Longa entrevista de Vítor Pereira hoje ao Jornal O Jogo
O líder da CA não é contra a tecnologia no apoio às arbitragens. Como preconiza a UEFA, admite testar cinco árbitros (mais dois assistentes, nas linhas de fundo) na próxima Taça da Liga. Nem sequer acha "curtos" os 1090 euros pagos a um árbitro por jogo da Liga Sagres. O diálogo, no entanto, tem outras preocupações...
VÍTOR PEREIRA >> reclama um novo enquadramento regulamentar para que os árbitros evoluam. Se o profissionalismo é a prioridade, o presidente da Comissão de Arbitragem põe o dedo em algumas feridas - incluindo a dos observadores. Uma entrevista sem cheiro corporativo.

O ano de 2008 chega ao fim sem constituir excepção: chovem críticas sobre os árbitros. O balanço que faz é diferente?
Mesmo antes de entrarmos em funções, dissemos que, com o actual paradigma de organização, os árbitros estavam no limiar do seu desenvolvimento. Não é possível, no actual modelo organizativo, haver melhores árbitros, árbitros com melhor nível de desempenho. Um conjunto de factores condicionam outra exponenciação do quadro de competências - desde a formação possível até aos métodos e técnicas de treino; são factores que inibem a melhoria desejada.
Essa é uma afirmação perigosa. Pode concluir-se que o nível dos árbitros não é bom…
Não, não é isso. O futebol evoluiu muito, a vários níveis, nos últimos 25 anos. Os treinadores em Portugal conseguiram acompanhar o desenvolvimento do futebol, mas a estrutura da arbitragem não foi capaz de sorver inputs importantes que levaram a que o jogo se tenha de facto desenvolvido e tornado melhor. As questões são sistémicas, e a arbitragem merecia, e merece, acompanhar as mudanças. Hoje, o processo de avaliação ou as carreiras na arbitragem são genericamente as mesmas. Há uma dessintonia entre a realidade e a necessidade. São precisas mudanças substantivas. O actual modelo com que trabalhamos é um ponto de partida - apetrechámos oito centros de treino, criámos a figura do treinador dos árbitros -, mas temos de continuar a lutar pelo desafio da melhoria.
Onde estão os problemas para essa espécie de "estagnação"?
Há problemas a montante e a jusante. Impõe-se uma nova forma de evolução na carreira e ao nível da formação, com a introdução de novos conteúdos complementares. Que fique claro: os árbitros querem aprender e são os primeiros a sentir quando as coisas não lhes correm bem. Sofrem com os insucessos. Mas ficam depois no impasse para a ultrapassagem disso, do ponto de vista didáctico. E, nessas circunstâncias, o que fazemos? É difícil suplantar os problemas de modo organizado, colectivo. Impõe-se, pois, mudar o paradigma de trabalho dos árbitros levando em linha de conta o conhecimento intrínseco de cada um para o colocar ao serviço do grupo.
O quadro que apresenta é negro!
Não, não é; é realista. Aliás, em abono da verdade, devo afirmar que os árbitros atingiram a melhor forma física de sempre! Estão no máximo! Os problemas maiores colocam-se no plano técnico, difíceis de ultrapassar pela formatação da vida de cada um. Ter outra ocupação profissional, treinar à noite, não ter férias, é algo de complexo.
… mas os árbitros estão recompensados financeiramente! Ganham acima da média dos trabalhadores do País!
A questão não é financeira. O que queremos é que tenham tempo para… descansar! Que tenham tempo para as famílias. Os insucessos de desempenho são consequência de uma multiplicidade de questões. Estamos na presença de novas gerações e, se quer saber, só numa época tivemos muitas desuniões de facto nos árbitros. São matérias que, naturalmente, têm repercussão, queira-se ou não. Se um árbitro não estiver tranquilo, se não tiver estabilidade do ponto de vista social, o seu desempenho acaba por ser afectado.
É por isso que defende a profissionalização?
Os árbitros não devem ter uma outra actividade que vá além do meio-tempo.
Mas como se atinge esse objectivo?
Uma das fórmulas resultará das consequências da aprovação recente do Regime Jurídico das Federações Desportivas. As mudanças que implica acabarão por resultar na definição das necessidades de um vínculo como árbitro de futebol.
O regime jurídico não consagra essa matéria!
Não conheço o texto. O que vamos tentar procurar é que se diminua o actual quadro de árbitros [25, na I Categoria]. Defendo um quadro máximo de 22 árbitros - dos quais quatro em regime de estágio.
Como se chega lá?
Se defendo um grupo piloto de 18+4 árbitros - sensivelmente o dobro para árbitros assistentes -, temos naturalmente de passar por um processo transitório de três/quatro anos. O processo terá, entretanto, de ser inclusivo. Os árbitros têm direitos adquiridos, mas creio que estão todos em condições de aderir, não obstante termos consciência de que o actual quadro é muito heterogéneo e de que nele existem alguns árbitros com uma vida profissional extrafutebol muito intensa.

"A experiência é fundamental"
Todo o foco "administrativo" na carreira dos árbitros não explica algo de inquestionável: dualidade de critérios. Técnica e disciplinarmente, os árbitros parecem pardais à solta…
A discussão sobre a uniformidade de critérios há-de perdurar, seja qual for o quadro de competências. Não é fácil haver supostas 25 decisões coincidentes. Fazemos o possível para que a uniformidade exista.
Puxa as orelhas aos árbitros?
A questão não se pode colocar assim. Os árbitros são, aliás, os primeiros interessados em serem perfeitos. Há, garanto, um esforço colectivo, de grupo, para melhorar. Os árbitros, repito, estão no limite, e o que queremos é que aprendam com os erros. Precisamos de fazer um percurso… e de treinar, treinar. O futebol evoluiu; é hoje mais veloz, melhorou aspectos tácticos, há maior movimentação no último terço do campo - e todos esses são desafios a que temos de dar resposta. Apesar das limitações. E é importante perceber que temos um quadro de 25 árbitros e que dez deles ainda não arbitraram dez jogos na Liga Sagres. E temos a média de idades mais baixa de sempre nos árbitros da I Categoria. Os árbitros precisam de tempo para evoluir. Compete-nos proteger os árbitros do futuro.
Fez muitas ondas a sua afirmação recente de que não tinha condições para ir buscar árbitros no chamado mercado de Inverno. Está explicada a deficiência…
Não, não é assim. Houve um erro de interpretação em relação ao que afirmei. A solução é trabalharmos com os árbitros que temos. Dou-lhe um exemplo paradigmático: Bruno Paixão. Tem 34 anos de idade e leva 12 épocas de I Categoria… E as pessoas esquecem-se de que ainda tem mais 11 para a frente.
… ou não. Pode ser despromovido!
De facto, pode descer… mas não é provável. A experiência é muito importante - e necessitamos dela. É uma vantagem tremenda. Temos árbitros com 200 jogos realizados na Liga Sagres e Liga Vitalis e jovens que têm um, dois, três, quatro jogos. Temos de ter muito cuidado. Temos alguns árbitros jovens aos quais devemos disponibilizar mais condições de evolução. Não temos outros!
Estamos, então, num beco sem saída.
Não é assim. Devemos é dar, aos árbitros, cada vez mais e melhor formação, em múltiplas valências. Para a optimização do quadro de conhecimento dos árbitros, o recrutamento é fundamental. Recrutamento-selecção-formação profissional são vectores essenciais.

"Há assistentes com menos de 20 jogos de seniores!"
Os árbitros assistentes, normalmente, não são tão crivados de críticas como os árbitros. Mas as pechas também existem. Está consciente delas?
É preciso regulamentar a carreira dos árbitros assistentes - a actual está desajustada da realidade. Após o Mundial dos Estados Unidos, a FIFA concluiu que os árbitros já não conseguiam acompanhar o fora-de-jogo e deu, aos juízes de linha, novas responsabilidades - e criou a carreira. Mais tarde, os fiscais-de-linha passaram a ser árbitros auxiliares, mas a estrutura não acompanhou a mudança. Do que precisa mais um árbitro? De um tipo que seja só bom no fora-de-jogo ou de um que seja uma muleta efectiva na tomada de decisão nas grandes penalidades, nas mãos na bola, nos tackles, etc.? A minha resposta vai para a segunda hipótese. O actual problema em Portugal vai de facto para o modo como os árbitros assistentes chegam à I Categoria. Temos dez jovens acabados de chegar à I Categoria, mas que não fizeram, antes de cá chegarem, 20 jogos de seniores... mesmo a nível distrital! Não pode ser! Não é aceitável! Isto fragiliza, inclusive, a confiança das equipas de arbitragem. Mas não se pense que vivemos uma situação catastrófica. Não. Alguns dos melhores árbitros assistentes são portugueses!
Está bem, mas há problemas. Os quais se agravam quando não há equipas fixas de arbitragem.
Somos adeptos de que haja. E já caminhamos nesse sentido. Tentamos reduzir, a três árbitros assistentes, o acompanhamento de cada árbitro. Podendo haver, sou apologista de equipas fixas.
A Comissão de Arbitragem dispõe de melhores árbitros assistentes do que árbitros?
Temos alguns dos melhores árbitros assistentes do Mundo. Alguns que não são internacionais são de enorme qualidade, de grande coragem. Se me perguntar, respondo-lhe: enquanto grupo, o dos árbitros, comparativamente, é superior ao dos assistentes.
… mas não tem dos melhores árbitros do Mundo!
Essa é uma questão que pode ser analisada do ponto de vista aritmético. Sejamos claros: Portugal está no top do mundo da arbitragem, tal como a Selecção está. Portugal tem um árbitro no Top 25 da UEFA, três no Top 50. No ranking das universidades recentemente divulgado, Portugal tem uma no 48.º lugar mundial [a Universidade Católica]. Os oito árbitros internacionais que já estiveram em competição esta época atingiram, em conjunto, a melhor média de notas de há largos anos a esta parte. Não tivemos uma única nota negativa.

Avaliação dos observadores é tão polémica como a dos… professores
Não há como esconder: o grande mal da arbitragem, o que tudo distorce e tudo coloca sob suspeita, são os observadores. Está ao menos de acordo se se disser que eles alimentam o famoso "sistema"?!
Não há sistemas de avaliação perfeitos - e aí está a polémica em volta do sistema de avaliação e desempenho dos professores para o provar! Não somos os autores do actual modelo de avaliação e desempenho. O protocolo que os observadores usam é quase fiel ao modelo da UEFA ou ao que existe na Suíça, na Alemanha, em França, por exemplo. Ele contém as linhas orientadoras por que se devem reger. E mudámos a escala!
Pois. Uma fórmula eufemística. Há arbitragens que são de bradar aos céus, com erros de palmatória - vide o último Sporting-FC Porto da Taça de Portugal, apitado por Bruno Paixão -, e as notas dadas são de pasmar!
Há um problema!, admito-o, embora haja um grande esforço para melhorar. Não há é volta a dar! No quadro de 28 observadores, não há sequer nenhum ex-árbitro internacional ou de I Categoria - na Bélgica, o Comité de Árbitros é composto por sete! Uns rompem com a actividade, outros vão para a comunicação social. Temos de proceder a recrutamento, na II e na III Categoria, mas o que hoje existe é que a classificação dos observadores é um handicap.
… é como a questão dos professores que estavam para ser beneficiados na carreira com as notas que atribuiriam aos alunos.
Exactamente.
E então?
Temos de caminhar para um quadro fechado de observadores. Sem classificações, porque estas pervertem a essência da actividade. Enquanto houver classificações que tenham de atribuir e que também influenciam a deles… cortam-se! Aliás, a classificação dos árbitros dada pelos observadores deve ter uma componente de nota através do visionamento das transmissões de televisão. Seja como for: não podemos crucificar alguns observadores que escrevem em consciência e que depois, pela televisão, verifica-se estarem enganados.

Não diz "nunca" à presidência do Conselho de Arbitragem
A entrada em vigor do Regime Jurídico das Federações Desportivas vai obrigar a mudanças estatutárias na FPF e a… eleições. Por via delas - e porque a gestão dos árbitros voltará à FPF, dispondo de dois ramos, o profissional e o amador -, é legítimo perguntar: é Vítor Pereira um potencial candidato à liderança do CA?
Trata-se de um cenário prematuro. Neste momento estou empenhado em terminar o mandato na Liga [2010] procurando que se atinjam todos os objectivos programáticos. Quero deixar uma organização mais moderna, consoante com as exigências. Se não digo "nunca"? Não, não digo "nunca".

"Nenhuma pressão dos clubes"
A Comissão de Arbitragem propôs, a AG da Liga aprovou: esta época, os clubes estão proibidos de apresentarem reclamações sobre o trabalho dos árbitros. Defende o princípio da lei da rolha?

As reclamações deixaram de ser possíveis, porque a UEFA não as permite. Mas convém esclarecer que criámos um canal de comunicação, via internet, através do qual todos os agentes desportivos nos podem fazer chegar as suas preocupações, sob garantia de que terão resposta. Têm é usado pouco esse canal!
Então as críticas não fazem sentido?
São um fait divers. Todos os clubes receberam informação explicativa do processo através do qual nos podem contactar. Dispõem de um canal aberto em permanência. Defendemos uma relação franca e aberta, a bem do espectáculo.
Mas a Comissão de Arbitragem não tem sido pressionada?
Não sentimos nenhuma pressão dos clubes, embora a que é expressa na comunicação social possa levar a pensar o contrário. Têm todos denotado grande respeito pela nossa actividade - faço notar, por exemplo, o grande esforço de contenção verbal que se tem registado por parte dos treinadores. Tem havido equilíbrio na forma das críticas - e esse é um motivo de regozijo.

"Há árbitros que falam sem autorização"
Parece existir uma discrepância nítida no modo como gere a política de comunicação dos árbitros. Uns não clarificam casos de jogo sob a alegação de que estão proibidos, outros - ainda agora aconteceu com Pedro Henriques, após o Benfica-Nacional - dão explicações públicas. Há árbitros de primeira e árbitros de segunda?

Claro que não. O que há é um conjunto de normas conhecidas por todos. Defendemos a exposição pública apenas em circunstâncias que contribuam para o esclarecimento de certas situações. O que tem acontecido é que alguns árbitros não têm cumprido as normas.
Falam sem autorização?
Sim, falam sem autorização. As normas, em certas circunstâncias, têm sido de facto pouco eficazes. Admito que passe por vezes a ideia de que há árbitros a quem permitimos mais exposição do que a outros, mas não é verdade.
Se é assim, não toma medidas?
Procuramos ser uniformes. E sabemos o que temos de fazer!
Há uns que são mais rebeldes, digamos assim, do que outros?
Tem acontecido.
Aparentemente passam impunes.
Aparentemente.

"Não temos jeito para justiceiros!"
Uma das "punições" possíveis para árbitros com maus desempenhos - ou comportamentos - pode passar por colocá-los na jarra. Usa-a?

Não gosto do termo, criado há muitos anos, e num determinado contexto, por um ex-presidente do Conselho de Arbitragem [Fernando Marques]. Lido com pessoas…
Está bem: pode colocá-las numa jarra tratando-as como flores de estufa.
[sorriso pela observação] Não é nesse sentido que se costuma aplicar o termo "jarra". Não temos jeito para justiceiros! O que temos é, como nas equipas de futebol, um critério para nomear os melhores árbitros para cada jogo, e, em certas circunstâncias, alguns ficam de fora. O que queremos é que, no final da época, os melhores classificados sejam os que fizeram o maior número de jogos. Assim também contribuiremos para a melhoria da competição. De resto, percebo que nem sempre sejam entendíveis pela opinião pública os critérios das nomeações. Mas com uma certeza: os árbitros sabem quais são os critérios. E já os perceberam.

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